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"Retalhos da vida real"

por R.Cheiros, em 15.05.08

 
A ver se hoje consigo sair mais cedo, hei-de pensar em qualquer coisa, digo que tenho que levar a miúda ao dentista, afianço que é o único dia disponível do doutor.
Hei-de sair cedo, apanhar o autocarro antes que comece a confusão da hora de ponta, saio cedo e vou ao cabeleireiro já combinei com a Lucinda, nada de muito complicado que não há tempo nem dinheiro, pelo menos lavar e secar, fica-se logo com outra cara.
Comprei ontem uma camisa de dormir curta, avermelhado escuro, com folhinhos em cima do peito.
A ver se hoje.... Pensei que hoje porque hoje é quinta-feira, dia em que o Jorge consegue chegar mais cedo, apareço-lhe sem a menina, ele pergunta por ela e digo-lhe que ficou em casa da Céu a fazer os deveres da escola com a miúda dela, ando a pensar nisto porque percebi que tenho que arranjar tempo.....O que equivale a dizer ocasião, a tal que se diz que faz o ladrão.

Porque o resto do tempo, levantar, fazer o pequeno-almoço, correr para o autocarro, chegar à companhia de seguros, atender telefones, quando cai a noite correr para o autocarro, apanhar a menina, chegar a casa, manda-la para o banho, fazer o jantar, pôr a mesa, levantar a mesa, passar a loiça por agua, ir ao quarto dar um beijo à menina que amanhã há escola, e há o emprego para mim e o emprego do Jorge, sento-me ao lado dele na sala, a cabecearmos em frente aos concursos.

Por isso nunca é de noite porque a noite estamos cansados, nunca é de de manhã porque de manha não há tempo, nunca é ao fim de semana por causa das compras para a semana, porque a menina anda lá por casa, porque o Jorge, e acho isso natural, as vezes vai ao futebol, outras ao café estar com os amigos.

Agora ando a pensar nisso, a primeira coisa que nos aparece é a primeira a ir-se embora.

Andamos desencontrados, é o que costumo dizer, andamos desencontrados e não há maneira de nos encontrarmos.

Às vezes no sofá o Jorge vai-se chegando a mim, passa-me a mão ao de leve sem olhar para mim, mas eu penso na roupa que não se passa a ferro sozinha, eu de ouvido alerta a ver se a menina ainda acorda.

De maneira que o Jorge retira a mão amuado, e nas próximas horas, nos próximos dias, responde-me torto por causa de tudo e mais alguma coisa, e se percebo que a menina dorme já e se estamos na cama, toco-lhe eu, a luta contra o sono, toco-lhe na perna a ver se ele percebe que pode ser, mas ele volta-se a fazer barulho, a fingir que já ressona, os amuos duram cada vez mais.

Embora possa jurar que não quero um amante, como não estou a ver o Jorge com tempo para uma amante, acontece apenas que andamos desencontrados, que alguma coisa se partiu e logo aquela que nos juntou, porque não me venham com coisas, a gente no princípio o que quer é abraçar-se e tocar no corpo um do outro, e agora temos que arranjar minutos para tanta coisa que depois para isso já não dá.
As pernas nunca mais se tocam quando querem tocar, porque uma quer e a outra não, e no dia seguinte a que queria já não quer, mesmo que a outra agora insista.
E não quero amante coisa nenhum, quero o Jorge, não me quero mostrar a amantes, visto-me e dispo-me de costas para o espelho, não me quero ver porque acho que vou arranjar explicação definitiva para isto, e vou concluir que percebo porque é que a primeira coisa que nos junta é a primeira a ir-se embora.

 

Texto: Rodrigo Guedes De Carvalho

 

publicado às 10:22


25 comentários

De jangadadecanela a 15.05.2008

Olá...

Digo-te... este é um tema delicado e parece-me que a tua abordagem ao assunto é muito boa. quando o casal, por causa do corre corre nao consegue encontrar tempo (ou quando encontra nao tem a tranquilidade necessaria para se entregar a um momento) começamos a criar uma bola de neve... isto porque tambem falar sobre o assunto parece desculpa... ficamos sem saber se sim, se não´, se cansaço, se ... só ses...

planear um momento parece-me muito bem! fico a torcer para que dê certo...

Abraço

De R.Cheiros a 15.05.2008

Olá e bem vindo de novo;)

Alem de delicado parece-me a mim bastante realista a forma como o autor: Rodrigo G. de Carvalho aborda o tema, sim porque este texto não é meu .

Mas é uma realidade hoje vive-se numa corrida contra o tempo se não repara: Acordamos de madrugada para preparar os miúdos para o colégio de seguida vai-se a correr para o transporte que nos vai levar a nós ao emprego.

Nesse entretanto apanhamos uma carrada de nervos em infindáveis filas de transito ou quem vai de transportes públicos a corrida é quase igual.

Passamos um dia inteiro a fazer valer o dinheiro que nos pagam a maior parte das vezes uma miséria.

Chega o horário de sair e vamos fazer o caminho no sentido inverso para apanhar os miúdos no colégio, mas entretanto fazer umas compras de umas coisas que estavam em falta, chegar a casa olhar o relógio e … Meu Deus esta na hora de fazer o jantar ,dar banho ao miúdos, ver se trazem deveres,.

No final da cozinha arruma quando pensas que te vais esticar um bocadito… Bolas ainda falta a roupa que esta para por na maquina ou para estender ou ainda para passar… Olhas para o relógio e dizes : meia noite ,e agora estou louco para fazer amor ou socorro quero cama?

Existem muitos casamentos que não sobrevivem à rotina de uma vida sem tempo para nada..

E como tu dizes tudo isto se transforma numa bola de neve e pode deixar de ter solução.

Também espero que corra bem a quem estiver nesta situação.

Não é o meu caso.

Já não tenho meninos pequenos, já não tenho estes desencontros a não ser os que eu provoco. ..

Mas já vivi momentos semelhantes na minha vida, assim como todos os casais e quando se consegue dar a volta por cima é excelente.

Beijo

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